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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

CRÔNICAS: MEMÓRIA II

A vida e o Nada


Imagem de: VikkiGothAngel

Hoje, tudo o que me resta são as memórias que se perdem na bruma de um tempo que se foi e a brisa gélida perfumada de jasmins, nessa noite pálida de lua cheia, carregará consigo o meu último e cansado suspiro. As flores negras que banhadas da prata luz lunar, possuem um brilho etéreo e difuso, já não sei a que mundo pertenço e se tudo não passa de uma ilusão. Mas se em meu corpo ainda há o sopro então serão elas as únicas a velarem por minha carne decomposta, as testemunhas lúgubres do banquete dos corvos. Pois não há nada, não há ninguém, somente o vazio e o abandono permanecem.
Em minha garganta um nó se forma ao fitar ao longe o balanço que se move fantasmagoricamente, suas correntes enferrujadas a ranger sonoramente no silêncio mórbido da noite – sinto que quase posso ver como em um filme as  lembranças se desenrolarem diante de meus olhos... Foram tantos  momentos naquele mesmo cenário e os sonhos e esperanças que nutríramos naquele tempo, os amores que jurei levar ao túmulo, qual eram afinal? Não sei...
E o sorriso doce que vazava de nossos lábios sempre que brincávamos naquele balanço rústico, onde foi parar?
Com esforço sei que poderei reviver tudo aquilo em minha mente, todos os risos e choros, e o abraço cálido de minha irmã, quase consigo sentir o cheiro de morangos no vento - para mim esse sempre seria o cheiro dela – a escapar de seus lisos fios negros enquanto me dizia que seríamos inseparáveis, “mesmo quando fossemos duas velhas feias e enrugadas, com cara de chuchu passado, igual a vovó”.



E como em muitos outros momentos, tenho vontade de gritar ao vento que ela era uma mentirosa, uma maldita mentirosa encantadora...
Mas, apesar de velha ainda não perdi a razão e somente os loucos falam com os mortos...
Sei que não deveria culpá-la por algo que provavelmente não era de seu desejo, ou algo que muitos chamaram de: “uma tragédia horrível”, “um infortúnio”, “uma perda muito triste”... Mas ela não deveria ter saído de sua casa para comprar comprimidos para dor de cabeça tarde da noite e com certeza, não tinha o direito de ser assaltada, levar um tiro e morrer ali mesmo, em uma sarjeta qualquer, nos deixando um rombo na alma e nas vidas que jamais seria preenchido.
São coisas desse tipo que nos fazem perceber quão insignificantes são nossas vidas e quão simples é, simplesmente, desaparecer do mundo deixando para trás somente uma carcaça gelada e vazia.
Queria ter lhe dito o quanto era importante que ela cumprisse sua promessa infantil e o quanto me destruiria perdê-la, porém, não creio que faria diferença, e no fundo, sei que ela sabia de tudo isso. Uma vida inteira de cumplicidade, amor e fraternidade deve significar algo afinal.
Apesar dos esforços, um soluço estrangulado escapa por entre meus lábios enrugados e flácidos. Tenho certeza que não há ninguém que possa me ouvir agora, mesmo que eu grite a plenos pulmões ou corra nua – o que seria deplorável – não há ninguém para testemunhar o meu carma e a minha queda.
E imaginar isso me faz sorrir, pois me lembra um doce verão, danças sensuais, beijos e conversas ao pé do ouvido e minha melhor amiga, ou alma gêmea.
Sentada nua em frente a penteadeira eu escovava os meus cabelos ruivos e indisciplinados, a luz das velas bruxuleavam sobre minha pele causando um efeito místico, quando ela chegou por trás com uma taça de vinho e um sorriso matreiro.
- Mas que bela visão temos aqui.
Sorri despudorada e tomei-lhe a taça das mãos.
-Gosta do que vê? – perguntei levando a taça aos lábios.
- Talvez – respondeu ela tomando de volta a taça – mas vamos descer e aproveitar o melhor que essa queda de energia tem a nos oferecer.
Sorrimos jovialmente, peguei meu vestido turquesa e descemos para o luau. Ali surgia a amizade mais verdadeira que tive na vida, sempre brincávamos que uma de nós havia nascido com o sexo errado e que seríamos um casal perfeito. Mas nós gostávamos demais de homens para tentar mudar nossa opção sexual.
Foi com ela também que tive uma das melhores experiências de minha vida, correr nua pelo campus da faculdade na madrugada de nossa graduação. Nunca havia me sentido tão livre e repleta de mim mesma, como se o ser que sou por baixo de todas as máscaras sociais se libertasse e irradiasse de mim. Nossas risadas ascendiam aos céus enquanto dançávamos despudoradamente, sem música alguma, naquele momento mágico de libertação.
Quisera Deus que eu pudesse tê-la comigo agora, embalando-me em seus braços como sempre fazia quando eu me sentia fragilizada. Mas o destino quis que seu riso morre-se mais cedo que o meu e que eu fosse a última recordar aquela fada núbia, irreverente e bela que por pouco tempo tornou a minha existência mais bela e mágica.
Pensando dessa forma, não consigo concluir se a memória é uma benção ou maldição, ela é tudo o que sou e o que fui; o que poderia ter sido, mas não fui. Mas há momentos em que eu só quero esquecer de mim, quero navegar no nada e desfazer-me, desvestir-me de mim e desaparecer.
Com um suspiro volto meus olhos razoavelmente míopes em direção a lua cheia, e me pergunto: quantos amores e desamores ela já não testemunhou? Quantas vidas não começaram e terminaram sob seu brilho? Qual o significado de tudo isso afinal? Porque existimos? Por que...
Em um movimento involuntário meus dedos roçam por meu pingente em forma de lua crescente e sou imediatamente teletransportada para uma noite tão silenciosa quanto essa, mas em um cenário totalmente diferente. Um parque em que as estrelas e a lua brilhavam no céu e o colorido da vida me enchia as retinas inundando-me do prazer de viver.
Em minhas mãos a promessa de um futuro era leve e a certeza de que a vida é maravilhosa e todas as palavras do dicionário não seriam suficientes para explicar o que eu sentia queimava em meu peito. Como é bom sermos amados...
- Da mesma forma que a lua é eterna em seu firmamento, assim será meu amor por você. E, ah, ela é crescente pois sempre que penso que não posso amá-la mais, me pego amando mais ainda. – dizia ele com os olhos brilhantes e sérios.
Um sorriso explosivo e emocionado explodiu de meus lábios de cereja e com efusivos “sim” eu aceitei unir-me aquele advogado bobo, de expressão séria e riso fácil em matrimônio. Segurei-lhe a face e beijei-lhe os lábios como se fosse um náufrago sedento e ele fosse uma garrafa de whisky perdida.
Se eu pudesse gostaria de voltar naquele dia só para ter aqueles olhos escuros sobre mim novamente, sentir a textura daqueles lábios, tocar aquela pele e me sentir a criatura mais amada na face da terra novamente...
Até hoje sinto que vou me afogar sempre que penso naqueles cabelos negros e sedosos, tão adorados emplastados de sangue e pontilhados de cacos de vidro, sinto que vou partir ao meio quando lembro de seu último olhar para mim e a forma como eles pareciam pedir perdão por me deixar sozinha nesse inferno, desesperada e arrasada com a maneira que ele, no último momento girou o volante permitindo que o meu lado do carro saísse ileso e ele virasse uma massa de carne humana.
Nossa promessa “vamos ter uma noite inesquecível” como um canto diabólico retumbando em minha mente, uma forma da vida rir da minha cara e me dizer que não somos nada e que pensar o contrário é mera ilusão. Que nosso tempo aqui é incerto e podemos desaparecer a qualquer momento.
Ainda hoje, se eu fechasse os olhos agora tenho certeza que poderia imaginá-lo sentado ao meu lado, suas mãos enormes cobrindo as minhas, e a sua presença a inundar-me com seu calor pungente.
Eu jamais poderia esquecer a forma como tudo fazia sentido ao lado dele e as dúvidas simplesmente não existiam. Com ele eu sempre soubera qual era exatamente o meu lugar no mundo e os motivos pelos quais as coisas aconteciam não importavam.
Depois dele não haveria mais ninguém, ninguém seria capaz de substituí-lo e o futuro que poderíamos ter tido – os filhos que planejávamos ter, os questionamentos sobre com quem se pareceriam e quantos seriam – perdeu-se em meio aos meus gritos de desespero sobre o seu caixão lacrado.
Talvez a vida não tenha mesmo um significado e a forma como a minha mãe fazia café para mim todas as manhãs e me desejava um bom dia com um olhar cansado tenha sido uma ilusão, ou a maneira com que trançava os meus cabelos com um olhar compenetrado a brilhar nos olhos verdes.
Ou o sorriso com que me brindou quando contei que iria me casar, ou a felicidade com que dedicava-se a exaustiva escolha do vestido de noiva enquanto meu rabugento pai ameaçava meu futuro marido a morte caso me fizesse sofrer.
O que é engraçado e me faz rir histericamente, pois, quem pode prometer nunca machucar alguém com tamanha incerteza?Nunca sabemos o dia de amanhã, nossa compreensão das coisas muda o tempo todo, assim como nossas vontades. Somos todos tão ingênuos...
Tão ingênuos, pai...
Quem poderia imaginar que o pior sofrimento que ele poderia me impor seria a própria morte?
E então eu me lembro da última vez que vi meu pai. Ele estava sentado em uma pedra na beira da roça, seus cabelos brancos como a neve e sua pele castigada pelo sol tão enrugada quanto a minha hoje.
- Sabe, quando chegamos a uma certa idade temos duas escolhas.
- E quais são, pai?
- Acreditar que tudo possui um significado, ou que nada possui.
- Não entendi.
- Um dia você irá.
É irônico pensar que eu havia me esquecido disso até esse dia e que ele morreu naquela mesma noite. Talvez assim como eu ele simplesmente soubesse e buscasse tão desesperadamente quanto eu, por um significado para tudo. Pois a alternativa é triste demais.
Meu pobre pai, queria ter compreendido melhor aquele velho turrão.
Mas sei que cada um de nós fez o melhor que pôde e que nossas divergências foram fruto, não da raiva ou indiferença, mas sim do amor.
Assim como os amigos que tive, e todos aqueles que tiveram suas vidas entrelaçadas a minha, provavelmente fizeram o que acreditavam ser melhor. Mas somos tão falhos...

Lá longe ouço o uivo de um cão, um calafrio me percorre a espinha e sei que o desfecho de tudo esta próximo, todos os mistérios se findarão e saberei se tudo foi em vão... Mas talvez, quando eu tiver essa resposta ela já não signifique...Nada.

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