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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

CRÔNICAS: MEMÓRIA I


Memória de dois



 Imagem de Nathalia Suellen
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              Hoje, as lembranças são tudo o que me resta daquilo que um dia pude chamar de nós. Quando olho para a mesa com aquela marca de copo, imagino você sorvendo de apenas um trago sua água benta corrompida, Johnnie Walker; fumando seu cigarro com cheiro de canela; escutando aquela banda que somente você era capaz de gostar, naquele toca CD velho, que um dia comprei para você anos atrás, com aquelas notas amassadas que tinha no bolso, naquele ferro velho dos eletrônicos. Foram os tostões furados mais bem gastos da minha vida, pois eles me permitiram ver o sorriso mais lindo do universo direcionado a mim.
               Naquele tempo pensávamos e acreditávamos que nada no mundo poderia mudar o que sentíamos. Aquela cumplicidade de carne e alma. Parecíamos duas peças que se encaixavam deliciosamente uma com a outra. Conversávamos sobre tudo, tanto abaixo das estrelas, quanto acima. Éramos duas almas em ascensão, desvendando-se mutuamente em meio a um turbilhão de informações desconexas que eram as nossas vidas, havíamos encontrado uma ancora.
           Você era para mim aquele dia chuvoso e fresco no qual passamos metade do dia debaixo dos lençóis, tomando um chocolate quente, ouvindo uma boa música. Era assim que eu te amava. Era assim que eu me sentia sempre que estava em seus braços, mesmo que lá fora a temperatura fosse mais de 30 º e estivéssemos derretendo com aquele ventilador velho que nunca tínhamos dinheiro pra substituir, mas que também nunca nos deixou na mão, mesmo quando quase explodiu porque você acidentalmente chutou o botão “velocidade máxima” com muita força, naquele dia em que tivemos certeza que morreríamos de calor e por isso decidimos andar pelados pela casa e fizemos a festa do vinho gelado... Uma festa para dois que resultou em corpos exaustos e ressacas legendárias.
               O mais engraçado é que em meio a tantas lembranças eu não consigo lembrar exatamente a forma em que nos conhecemos, é como se você sempre tivesse estado ali comigo, me apoiando e recebendo a fúria de minhas TPM’s insanas... Recolhendo a toalha quando eu a esquecia no varal e queria ir lá fora pegar, assim, sem roupa, naquela nossa área que dava pra rua na qual sempre tinham crianças brincando.           Crianças que sempre nos faziam pensar em não ter filhos, porque elas eram simplesmente terríveis.
            Além disso, viviam tentando roubar o nosso anão de jardim em nosso jardim de concreto, no qual havia somente um vaso de flores lilases que eram originalmente minhas, mas que acabaram tornando-se suas, já que eu nunca tinha tempo para cuidar delas e mesmo quando tinha, eu acabava sentada naquela escrivaninha preta, que pintamos em um momento de loucura em um domingo ensolarado e tedioso, tomando um copo de vinho e escrevendo naquele velho computador branco, que travava mais do que funcionava e que me fez perder inúmeros contos, mas que era o único que tínhamos conseguido pagar com nossas bolsas de pesquisa da universidade.
           A universidade que acredito ter sido o nosso verdadeiro cupido, ela e aquelas várias doses de Contini Rose que tomamos naquela noite, depois daquela prova em que eu fui tão mal que queria esquecer que ela existiu. Porque foram aquelas doses que me permitiram libertar a borboleta vermelha que estava engasgada em meu corpo, agitando-se freneticamente para libertar-se e voar para as tuas mãos. E aquela que era pra ser uma das piores noites da minha vida, passou a ser uma das melhores, porque eu descobri que você queria ser meu player dois nesse jogo chamado vida.
           E não demorou muito para decidirmos juntar nossas tralhas e enfrentar a vida a dois de peito aberto... E carteira vazia. Lembro-me que nossa casa mal tinha moveis e que no começo nem cama tínhamos; somente um colchão de casal com um lençol vermelho e travesseiros brancos... Uma estante recheada de livros velhos e de fragrância própria, a maioria mais velhos do que nós, eram como nossos guardiães e testemunhas dos “crimes” e loucuras que se passavam dentro das paredes daquela casa, coisas que somente você e eu partilhávamos, um conto vivido por nós ao qual ninguém nunca teria acesso.
         Dizendo assim a vida parece que foi fácil, mas não foi, somente nós sabemos quantas lascas e cicatrizes surgiram em nossas almas durante o tempo que passamos juntos e o quão difíceis alguns momentos realmente foram, principalmente naquele verão em que a minha bolsa de estudos acabou e vivemos praticamente de vento e sem energia elétrica por vários dias. Tivemos inclusive que vender algumas coisas pela internet da sala de informática da faculdade. 
           Porém, eu acho que tudo valeu a pena. Cada segundo que passamos juntos em todos esses anos, inclusive as vezes em que brigamos, ou você soltou um pum e me prendeu pelos pulsos para não poder fugir do cheiro, valeram a pena. Porque foram esses momentos que constituíram quem somos hoje e transformaram a nossa relação nesse belo e brilhante diamante, que apesar de possuir algumas lascas faltando e ter umas rachaduras estranhas, é o maior legado que poderemos deixar para nossas memórias, pois ao final, é a isso que tudo se resume, um monte de lembranças que atesouramos com toda a nossa força, porque elas nos lembram quem um dia fomos e nos fazem ver que tudo valeu a pena. 
            Mesmo quando tudo o que resta é uma lápide de cimento, que não é nada além de algo para marcar que a criatura amada um dia existiu. E que a dor em meu peito ainda seja tão forte quanto no dia em que recebi a notícia do acidente e que eu soube que nunca mais poderia ver seus olhos castanhos sorridentes, contemplando a minha alma, daquela forma que só você podia fazer e me dizendo enquanto segurava em minhas mãos que sempre estaríamos juntos.

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