Noite passada, após ter permanecido o dia todo organizando
o sótão de minha nova casa, deitei-me na cama macia, desejando mais do que
qualquer coisa dormir. Mas não pude sequer roçar os dedos nos véus da inconsciência,
ela me negou fervorosamente teus braços e o descanso de que eu tanto
necessitava.
Senti-me exausta, mas ainda sim subi para o sótão novamente.
Havia algo ali que me atraia; um sopro, uma sensação, que tornava aquele, o meu
lugar preferido daquela casa.
Acho que conhecer um pouco mais de meus antepassados contribuía
para isso. Eram fotos, diários, livros e objetos encantadores. Tudo ali
cheirava a antigo e a mistério... História.
E sempre me seduziram de forma especial as histórias,
principalmente as baseadas em fatos reais, mais ainda as que contribuíram para
meu nascimento.
Por dias me vi consumida por caixas e caixas de
recordações, absorvendo tudo, organizando por época e ramo familiar.
Eu mal comia e bebia, não conseguia convencer-me a sair
de meu mais novo vicio, meu reino encantado do qual fora privada durante anos.
De fato, quando vovó morrera a casa ficou para mim. Ela
e tudo o que houvesse nela, já que eu era sua neta preferida e minha mãe não se
interessava por essa casa em que as paredes pareciam contar contos e cada
rachadura, cada lasca de tinta, cada móvel... Representavam vidas e histórias
de nossa família.
Ela provavelmente venderia o terreno e demoliria a
casa.
Não, vovó nunca perdoaria algo assim, por isso deixara
para mim o seu maior tesouro, deixando aos outros netos, pequenas posses que
lhes seriam de melhor agrado.
Ela sabia que eu cuidaria bem de nossa casa, essa casa
que tem sido nossa por várias gerações...
Vovó... Quanta saudade sentia dela e seu olhar
caramelado repleto de mistérios que nunca pude decifrar. Eu jamais fui capaz de
compreendê-la, e, após sua morte, eu precisava de um tempo antes de poder
voltar para esse lugar em que cada cômodo possuía tantas marcas inesquecíveis de
sua presença.
Então, cinco anos se passaram até que eu pudesse voltar
a minha terra natal. Abandonando emprego e casa eu fugira da capital e voltara
ao interior para um retiro em que organizaria minha vida com calma. Era
necessário após todas as tempestades que a assolaram.
E uma semana após a minha chegada, algo que só posso
denominar como “um fato muito interessante” ou “uma descoberta encantadora”
aconteceu. Enquanto eu me levantava do chão em que permanecera sentada por
horas, apoiei-me com a mão direita sob a madeira do piso, mas minha mão
afundou-se fazendo com que eu perdesse o equilibro , caindo estatelada no chão.
Por sorte não houveram grandes prejuízos ao meu corpo,
somente pequenos cortes. E enquanto eu retirava minha mão do buraco, meus dedos
rasparam em algo, o que aguçou a minha curiosidade de pesquisadora e mulher.
Tateei no escuro com o coração aos saltos, curiosidade
correndo em minhas veias no lugar de sangue.
Após algumas tentativas consegui tirar do meio do piso
de madeira um pequeno relicário de madeira negra com pequenas tulipas
entalhadas.
Minhas mãos tremiam de êxtase enquanto eu o trazia para
perto de mim. A expectativa doce e saborosa bombeando em minha alma.
Tantas duvidas e segredos... A quem pertencerá esse
relicário?
Lentamente abri a tampa, saboreando a sensação de
desvendar algo. Eu me sentia uma intrusa invadindo a privacidade de alguém, o
que me causava pequenas palpitações de culpa, que eram totalmente sobrepujadas
pelo meu desejo de descoberta.
No topo da pilha de papéis, havia uma tulipa
enegrecida, ressecada pelo tempo, que se dissolveu ao meu toque, deixando para
trás fragmentos do silencio de uma história que somente ela testemunhou. Um possível
beijo e um perfume dos quais só ela compartilhou, agora, perdidos para sempre.
No lugar onde antes estivera a tulipa, entrava-se um montículo
de cartas amarradas por uma fita vermelha de cetim.
Eu as segurei como uma mãe que, amorosa, embala o filho
que se ferira, consolando-as como se tivessem sentimento, e talvez tivessem.
Vagarosamente abri o laço que as envolvia e passei a
leitura delas, as cartas de minha avó... Sofia.