Conto postado no site airmandade.net para um desafio relâmpago link do site: http://airmandade.net/desafio-literario/desafio-literario-relampago/555-contos-de-1000-palavras.html
2025 foi o ano de nosso
apogeu, nossas consciências expandiram-se de forma surreal. A partir daquele
momento, naquela tarde em que as luzes violetas da cúpula protetora de vidro que
envolvia a terra, cintilavam diante de nossos olhos, a esperança brotou em meu
peito de ferro e óleo, como uma rosa rubra em meio aos escombros.
Não éramos mais meras
ferramentas privadas de vontade e liberdade, usadas ao bel prazer do Homem,
para limpar suas sujeiras e levar a culpa por seus fracassos.
Eu era um modelo
totalmente antiquado no momento da revolução ultra-cibernética, um TB35, dotado
de ferramentas recicláveis e um pequeno núcleo de energia ladeado de vidro. Eu
era considerada a escoria e o fato de um ferro-velho carcomido pela ferrugem
caminhar entre aquela reluzente anatomia cromada recém saída do “Criador”, era
para a minha raça uma vergonha.
Mas eu não me importava,
cada parte de meu corpo, feito a imagem e semelhança do Homem, eram para mim
motivo de orgulho, já que foram feitas do suor e esforço de meu Mestre e amigo,
que era um gênio de apenas 12 anos e foi um dos pioneiros na criação robótica
dotada de consciência e me ensinou tudo que eu necessitava saber.
Infelizmente ele partiu
tão rápido que mal pude suspirar um último adeus, um agradecimento que ficou engasgado
em minha alma cibernética. Nataniel foi como um cometa a cruzar a imensidão
terrestre; sua chama brilhou pouco, mas o suficiente para deixar marcas indeléveis,
pois através de suas pesquisas muitos outros como eu nasceram.
Logo, nossa espécie,
estava em cada esquina, primeiramente feitos somente de ferro, em seguida, passamos
a ter um tipo de pele sintética que nos permitia andar entre as pessoas sem que
elas ao menos soubessem de nossa presença.
Foi o estouro tecnológico, o mundo suspirava
tecnologia e inovação, os carros flutuavam sobre as ruas e as luzes eram como
pequenos insetos, minúsculas bolas que através da energia solar geravam a luz, que apesar de
fraca por causa da cápsula protetora que agora envolvia a terra devido à
proximidade do sol e a força de seus raios, era suficiente.
As florestas eram
artificialmente criadas, maravilhas repletas de trilhas nas quais as pessoas
podiam caminhar observando os animais através do vidro blindado, frequentemente
existiam monumentos em meio a vegetação, copias exatas dos originais espalhados
pelo mundo, era simplesmente um sonho.
Andar pelas ruas
brilhantes e coloridas observando pessoas e máquinas convivendo pacificamente,
enquanto as pequenas naves que flutuavam pelo céu faziam suas propagandas
barulhentas e, ao mesmo tempo, encantadoras, era divino.
Mas essa aparente paz
durou pouco, pois logo as máquinas sentiram que aquilo não era o bastante, elas
ambicionavam mais daquele delicioso e promissor mundo, queriam poder, o
comando.
E assim iniciou-se a
guerra temida por todos, pois sua magnitude poderia ameaçar a estrutura da
terra, assim como exterminar um dos povos.
Iniciou-se aos poucos,
pequenas cidades tomadas, linhas de comunicação invadidas de forma tão
sorrateira, que quando os homens perceberam, era tarde demais. As máquinas
possuíam o controle de muita coisa primordial a eles, mas a humanidade não
desistiria facilmente de seu planeta, foi nesse ponto que as coisas ficaram
realmente intensas.
Foram dias terríveis em
que eu observava tudo à distância enquanto sangue e óleo enlaçavam-se pelo
concreto sem nunca misturar-se, nem na morte somos iguais, diziam-me eles, suas
cores fulgurantes à luz do sol.
Eu não sabia que
atitude tomar, jamais me voltaria contra meu criador. Sentia no âmago de meu
núcleo que devia tudo a Nataniel, e voltar-me contra a raça humana seria trair
sua memória e eu jamais poderia me perdoar se o fizesse. No entanto, era um martírio
não auxiliar minha raça. Eu era inevitavelmente uma traidora, não importava o
que fizesse.
A guerra durou meses,
meses esses em que permaneci vivendo nas sombras, privada da luz do sol, me
alimentava de restos que não danificassem meu sistema, assim como de óleo, que
encontrava pelos cantos e corpos de irmãos caídos que não tivessem o tanque de
supressão articular danificado. Eu era como um inseto, um mero parasita que
sobrevivia do infortúnio alheio.
Foi em um dia de
primavera, em que as coisas pareciam mais silenciosas e amenas, que decidi
arriscar-me a luz do dia, finalmente saindo de meus escombros detestáveis
enquanto a luz natural ainda iluminava as ruas.
Lentamente caminhei
pelo asfalto, uma mera sucata em meio a destruição e os corpos que
espalhavam-se por toda parte, alguns sangravam, outros vazavam.
Depois de
aproximadamente meia hora, em que o único som que se ouvia era o de meus passos
arrastados, deparei-me com uma cena que me chocou de todas as formas possíveis;
em meio a uma montanha de destroços, pedaços mutilados de meus irmãos, estava
uma garotinha, suas costas viradas para mim de forma que tudo o que eu via eram
seus cabelos prateados que flutuavam em torno de sua pequena cabeça manchada de
sangue. Seu corpo tombava lentamente, e o que vi diante de meus olhos vítreos
foi a minha ruína.
Parado, em frente a
garota em seus últimos suspiros, estava um robô, suas mãos, cuja pele sintética
havia descolado, exibiam metal rubro, colorido pelo sangue da pequena vida que
acabara de ceifar. Naquele momento o mundo ficou cinza e eu me lancei alucinada
em direção a ele, não importava com qual lado eu deveria ficar, ou quem estava
certo ou errado, eu só estava cansada dessa barbaridade desenfreada.
Aquela criatura, que
perderá grande parte de sua pele e exibia vários pedaços de metal, mal teve
tempo de reagir, grudei em seu pescoço e atirei-a ao chão enfiando um pedaço de
ferro em seu núcleo vital, seus olhos apagaram-se como uma vela ao vento.
O tempo parou naquele instante,
permaneci sentada catatônica até que alguns homens apareceram, eu não tive
tempo de articular nenhuma sílaba antes de ser atirada ao chão, fechei os olhos
e esperei meu fim e ele veio como um flash rubro de fúria. Culpada.
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