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quarta-feira, 23 de maio de 2012

No relicário


         Noite passada, após ter permanecido o dia todo organizando o sótão de minha nova casa, deitei-me na cama macia, desejando mais do que qualquer coisa dormir. Mas não pude sequer roçar os dedos nos véus da inconsciência, ela me negou fervorosamente teus braços e o descanso de que eu tanto necessitava.
         Senti-me exausta, mas ainda sim subi para o sótão novamente. Havia algo ali que me atraia; um sopro, uma sensação, que tornava aquele, o meu lugar preferido daquela casa.
         Acho que conhecer um pouco mais de meus antepassados contribuía para isso. Eram fotos, diários, livros e objetos encantadores. Tudo ali cheirava a antigo e a mistério... História.
        E sempre me seduziram de forma especial as histórias, principalmente as baseadas em fatos reais, mais ainda as que contribuíram para meu nascimento.
Por dias me vi consumida por caixas e caixas de recordações, absorvendo tudo, organizando por época e ramo familiar.
        Eu mal comia e bebia, não conseguia convencer-me a sair de meu mais novo vicio, meu reino encantado do qual fora privada durante anos.
        De fato, quando vovó morrera a casa ficou para mim. Ela e tudo o que houvesse nela, já que  eu era sua neta preferida e minha mãe não se interessava por essa casa em que as paredes pareciam contar contos e cada rachadura, cada lasca de tinta, cada móvel...               Representavam vidas e histórias de nossa família.
       Ela provavelmente venderia o terreno e demoliria a casa.
       Não, vovó nunca perdoaria algo assim, por isso deixara para mim o seu maior tesouro, deixando aos outros netos, pequenas posses que lhes seriam de melhor agrado.
       Ela sabia que eu cuidaria bem de nossa casa, essa casa que tem sido nossa por várias gerações...
       Vovó... Quanta saudade sentia dela e seu olhar caramelado repleto de mistérios que nunca pude decifrar. Eu jamais fui capaz de compreendê-la, e, após sua morte, eu precisava de um tempo antes de poder voltar para esse lugar em que cada cômodo possuía tantas marcas inesquecíveis de sua presença.
       Então, cinco anos se passaram até que eu pudesse voltar a minha terra natal.      Abandonando emprego e casa eu fugira da capital e voltara ao interior para um retiro em que organizaria minha vida com calma. Era necessário após todas as tempestades que a assolaram.
       E uma semana após a minha chegada, algo que só posso denominar como “um fato muito interessante” ou “uma descoberta encantadora” aconteceu. Enquanto eu me levantava do chão em que permanecera sentada por horas, apoiei-me com a mão direita sob a madeira do piso, mas minha mão afundou-se fazendo com que eu perdesse o equilibro , caindo estatelada no chão.
       Por sorte não houveram grandes prejuízos ao meu corpo, somente pequenos cortes. E enquanto eu retirava minha mão do buraco, meus dedos rasparam em algo, o que aguçou a minha curiosidade de pesquisadora e mulher.
       Tateei no escuro com o coração aos saltos, curiosidade correndo em minhas veias no lugar de sangue.
       Após algumas tentativas consegui tirar do meio do piso de madeira um pequeno relicário de madeira negra com pequenas tulipas entalhadas.
Minhas mãos tremiam de êxtase enquanto eu o trazia para perto de mim. A expectativa doce e saborosa bombeando em minha alma.
       Tantas duvidas e segredos... A quem pertencerá esse relicário?
       Lentamente abri a tampa, saboreando a sensação de desvendar algo. Eu me sentia uma intrusa invadindo a privacidade de alguém, o que me causava pequenas palpitações de culpa, que eram totalmente sobrepujadas pelo meu desejo de descoberta.
       No topo da pilha de papéis, havia uma tulipa enegrecida, ressecada pelo tempo, que se dissolveu ao meu toque, deixando para trás fragmentos do silencio de uma história que somente ela testemunhou. Um possível beijo e um perfume dos quais só ela compartilhou, agora, perdidos para sempre.
      No lugar onde antes estivera a tulipa, entrava-se um montículo de cartas amarradas por uma fita vermelha de cetim.
      Eu as segurei como uma mãe que, amorosa, embala o filho que se ferira, consolando-as como se tivessem sentimento, e talvez tivessem.
      Vagarosamente abri o laço que as envolvia e passei a leitura delas, as cartas de minha avó... Sofia.





Que fiques com tuas máscaras, tua armadura fria e impenetrável, tua maquiagem perfeita e insondável, camadas de roupas belas, sapatos de salto e rímel.
Enquanto eu fico nu, de pele e de alma, totalmente entre entregue as tuas vontades, sou teu, completamente teu, como ninguém jamais foi e nem será.

Aquele que te ama

Me cubro, me mascaro, me disfarço, me escondo. Não sei se devo, nem se posso, muito menos se quero ou sou capaz.Perdida em meu próprio baile de máscaras, já não sei quem de fato sou.
Sofia

Você sabe, você sente, é como se fosse a coisa certa. Caminho, destino, sua alma clama, seu peito inflama em chama pura e cristalina de amor.
Quero resgatá-la, pois sei que sofres, pois apesar de seu cuidado e zelo com o jogo das máscaras que as circunstâncias e a sociedade lhe ensinaram a jogar, eu posso vê-la como se estivesse de peito aberto, tão nua e crua quanto eu estou e tão desprotegida quanto.
Bem sei eu o quanto foste magoada, machucada, torturada, ferida, enganada, sobrepujada de tal forma que em seu coração flagelado, calos foram crescendo.

Quando olho em seus olhos, sinto que lês minha alma toca, perpassa minha pele, minha carne, meu sangue e me toca e alcança de uma forma que nada e nem ninguém antes fora capaz de fazer.
Meu único medo é perdê-lo, ou pior, magoá-lo, sinto que não suportaria vê-lo sofrer, sucumbiria na mais fria e cortante dor que já existiu. Afogando-me lentamente em minhas próprias dores e lágrimas...
Sofia

Crês em destino Sofia? Suponho que não, eu também não lhe concedia o menor credito, mas desde que em teus cabelos dourados como o brilho do sol, meus olhos deitei e em teus olhos azuis como a mais bela lagoa minha alma derramei, passei a crer que ele existe. Pois veja, quais as probabilidades de dois estrangeiros como nós encontrarem-se sem que aja algum tipo de influência maior?
Acasos... Acasos... Pois sim, eles existem, mas não anseio por conceder-lhe todo o crédito pelo presente – não doce e nem indolor – mas completamente delicioso e viciante de conhecê-la.

Aquele que te ama

Sempre que me sento no peitoral da janela em que tantas noites saborosas vivemos juntos, sinto seus dedos escorrendo por meus cabelos, numa caricia inocente e pura, mas ao mesmo tempo cheia de uma intimidade maravilhosa, da qual nunca havia provado.
Sinto que é o certo, sempre fora e sempre será. Vês, acho que se não lhe conhecesse... Se não fosses tu, não seria ninguém...
Se es destino ou não, não me importo, só sei que lhe desejo, hoje mais do que nunca.

                                                                                                   Tua, Sofia.

Quero tocá-la e beijá-la. Idolatrá-la como uma deusa, que por certo para mim es.
Bem sabes que nunca fui muito correto e no fundo um tanto desonesto, mas nesse mundo funesto, eu só enxergava a dor e os dias eram sem sentido...Vagos...
Então perdoe-me quando digo que você é meu mundo! Perdoe-me se lhe sobrecarrego com meus sentimentos! Perdoe-me por encontrar em vós, minha salvação! Perdoe-me...Perdoe-me por amá-la tanto que dói.
Aquele que te ama

Eres um tolo romântico, um crente fervoroso  dos ideais românticos. Aposto que podias ver a serafins sempre que me beijavas...Mas o que estou dizendo? Creio que sou mais tolo ainda, pois nunca acreditei quando me diziam que eu entenderia porque com nenhum outro foi possível, quando encontrasse a pessoa certa. Hoje, longe de ti, quando sinto que parte de mim me foi roubada, tomada, furtada, tenho certeza absoluta e irresoluta desse fato. Perdoo-lhe, perdoo-lhe tudo, inclusive o fato de teres furtado meu coração sem minha permissão, mas somente se perdoares minha arrogância quando insisto que lhe amo mais.

Sempre tua, Sofia.

     Eu não podia acreditar, estava pasma. Quem era aquele que minha avó tanto amara? Porque meu avô não podia ser, já que as datas nos envelopes eram batiam com a que ele veio para o interior e consequentemente conheceu minha vó.
       O que teria acontecido com tanto amor? Que triste fado poderia haver separado tal par?
    Essas perguntas dominavam-me a mente, dominando todos os meus pensamentos e enchendo de pena a minha alma.
       O desejo de que minha avó ainda fosse viva assaltava-me periodicamente, eu queria com todas as minhas forças perguntar-lhe o que acontecera com o homem misterioso e porque ela acabara por casar-se com meu avô.
     Mas essas eram questões que eu nunca mais poderia fazer, a oportunidade perdera-se nos véus do tempo para sempre, e essa certeza me entristecia.
    Por semanas eu busquei por todo canto da casa por mais informações que pudessem levar-me mais fundo nessa história, inclusive em minha memoria eu tentava resgatar informações ou momentos que pudessem me ajudar a descobrir o que acontecera com esses dois. Mas tudo o que eu me lembrava era o olhar melancólico que por vezes ela ostentava quando imaginava que ninguém a observava. Na época pensei que sentia saudades de meu avô, hoje não tenho tanta certeza, afinal, o amor contido em cada letra dessas cartas fazia com que eu me sentisse envergonhada frente a sua intensidade, e também vazia, pois nunca sentira algo assim.
    Aquela história me consumia em ganas de saber seu fim e sanar todas as minhas curiosidades. Mas por fim, após incansáveis buscas por informações, eu desisti de procurar.      A verdade partira com ela, assim como acontece com todos os seres humanos. Todas as verdades que conhecemos, todas as memorias, partem conosco quando a chama de nossas efêmeras vidas extinguem-se.
      Por algum motivo do qual jamais tomarei conhecimento, ela só conservara aquelas poucas cartas, talvez por que não pudesse se convencer a desfazer-se delas, e elas permaneceram guardadas, como um segredo inesquecível que por vezes habita os corações, e no momento em que ela se foi, somente esse fragmento de sua alma restou. Como os ecos inefáveis de uma história que o tempo não apaga.





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Um comentário:

  1. Adorei este conto, cheio de uma vida que se perde no tempo. Muito bom mesmo, soube ludibriar-me com tuas palavras.

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