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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Conto: À espera



Todos os dias eu aguardo ansiosamente pelo seu retorno sentada no sofá. Os olhos fixos no televisor, esperando ouvir ao longe o som de passos conhecidos a se aproximar na calçada. O tempo não existe, há somente a espera que parece não ter fim e a ansiedade agonizante.
Na escada ouço um barulho que me desperta do transe.
- Mamãe?
- Oi querido – respondo rapidamente me levantando e indo vê-lo.
Sinto-me endurecida, como uma máquina enferrujada. O coração pesado a bater no peito – O que foi? Teve um sonho ruim? – Pergunto pegando-o nos braços. Meu pequeno tesouro.
Com um aceno de cabeça ele confirma. Seus olhinhos pequenos inchados de sono, os cabelos dourados bagunçados como os do pai.
- Ah venha aqui. Mamãe vai espantar o sonho feio com muitos e muitos beijos e abraços – digo começando a beijar-lhe a face pequena e redonda e a abraçá-lo repetidas vezes.
- Vai ficar tudo bem. A mamãe está aqui – repito enquanto o carrego para o quarto. Na cama ao lado sua irmã dorme despreocupada. Com cuidado coloco-o na sua e cubro-o cuidadosamente.
- Quer que a mamãe fique aqui até você dormir? – Pergunto afastando os cabelos de sua testa.
- Uhum.
- Está bem. Então feche os olhinhos e durma bem. Vou ficar aqui.
Ele fecha os olhos languidamente, mas somente para abrir de novo, segundos depois, com uma expressão preocupada a tomar-lhe a face inocente.
- Papai ainda não chegou?
- Não... Mas não se preocupe, vai ficar tudo bem. Papai é forte, lembra?
Ele concorda com um sorriso tímido, fecha os olhos e com o rosto tranquilo adormece quase imediatamente.



Após algum tempo levanto-me com um suspiro e me dirijo novamente à minha sala de espera e ao meu tormento. Com muito esforço tento não atribuir o atraso a algum incidente, tento me convencer de que tudo está bem e que nada aconteceu, que em instantes ele vai entrar pela porta com o olhar exausto e perdido, soltar um suspiro cansado, jogar as chaves no balcão, perceber que estou esperando e vir ao meu encontro a grandes passadas com um brilho esperançoso no olhar, suas mãos vão segurar meu rosto e ele dirá.
- Não precisava ter me esperado.
E eu responderei sorrindo:
- Eu sempre te esperarei.
Mas isso não acontece nessa noite e quando os pássaros começam a cantar lá fora eu sei que nada vai ficar bem e que não poderei mais enfiar as mãos em seus cabelos dourados e macios e caçoar dos poucos cabelos brancos dizendo que ele está ficando velho. Nem tão pouco poderei me perder em seus olhos tão cinzentos quanto uma tempestade.
Sei que agora falta pouco e alguém virá, com um olhar cansado e triste de quem preferia estar em qualquer lugar, fazendo qualquer coisa que não fosse aquilo e eu vou entender, pois vou desejar ouvir qualquer coisa menos o que eles virão me dizer.
Quando a manhã já ia avançada, ouço passos na calçada, meu coração se encolhe em expectativa, a esperança pulsando em minhas veias.
Mas a campainha soa.
Quero gritar e espernear. Bater em alguém com toda a minha força.
Porém, me levanto, arrumo o cabelo e abro a porta.
Dois oficiais fardados me confirmam o pior, sinto meu coração despencar rumo ao abismo, sendo comprimido dolorosamente.
Um nó se forma em minha garganta, mas não derramo nenhuma lágrima.
- Sra. Raquel?
- Sim.
- Podemos entrar para falar com a senhora?
- Claro, entrem – respondo abrindo espaço para os arautos de minha desgraça entrarem em minha casa – sentem-se, por favor – digo apontando o sofá.
- Obrigada – responde a oficial morena de olhos afiados e escrutinadores que parecem ver minha alma.
Eu quero perguntar, mas não quero saber, então permaneço em silêncio.
Um silêncio incomodo até que a oficial o rompe com um abrir de seus lábios carnudos.
- Vou direto ao ponto, senhora. Seu marido sofreu um ferimento de bala na noite passada ao atender uma ocorrência de assalto à mão armada. Ele está nesse momento em uma sala de cirurgia, porém os médicos acreditam que suas chances são pequenas. Sentimos muito por tudo ser repentino, mas precisamos levá-la para o hospital imediatamente.
Fecho os olhos e respiro fundo, minha alma aos pedaços. Um eco vibrante e sinistro “suas chances são pequenas”. Quero mesmo me levantar e chutar eles porta afora dizendo para pararem de mentir, porque aquilo não pode ser verdade.
Mas é.
E por isso me agradeço e levanto em transe, pego o telefone e peço para a vizinha se ela não poderia, por gentileza, olhar as crianças para mim por um tempo.
- É urgente – concluo com voz robótica.
- Claro – responde ela com apreensão – estou indo.
Quando termino de me vestir ela aparece com olhar aflito e piedoso. Ela sabe. Viu o camburão estacionado em frente a minha casa. Quando paro para falar com ela, tenta me abraçar mas me desvio não muito delicadamente e lhe lanço um olhar de desculpas, espero que seja o bastante. Não posso me permitir sentir. Se ela me abraçasse, sei que me desfaria em poeira e o vento me levaria para longe.
- Estou pronta – digo enquanto os espero parada na porta.
O caminho até o hospital é como um grande borrão e não me lembro de nada além do vazio.
No hospital tentei controlar o meu impulso de sair correndo e perguntando onde ele estava, onde diabos eles tinham escondido o meu marido. No lugar disso, caminhei calmamente ao lado dos oficiais que me levaram por corredores apinhados de gente com olhar vazio e desesperado. Muitos deles parecendo sofrer com algum tipo de dor física, muitos choravam e se contorciam em macas improvisadas esperando pelo atendimento que talvez nunca acontecesse.
O corredor seguinte encontrava-se mais vazio e foi lá que eles pararam.
- Vou checar qual a situação atual e volto para avisar a senhora.
- Obrigada – respondo sentando-me em um banco duro.
Pouco tempo depois o oficial voltou, sua feição inexpressiva me dizia tudo o que eu precisava saber. Com um aceno, levantei-me. Algo em mim partiu-se e me senti como um boneco, um fantoche sem vontade própria.
- Quando poderei ver o corpo?
- Quando for levado para o necrotério.
- Tudo bem, obrigada.
Lentamente caminhei em direção ao banheiro como se estivesse pisando em pregos, tudo o que eu desejava era me jogar no chão e chorar e foi o que eu fiz quando cheguei lá, encostei-me a porta e deixei toda a minha dor fluir, eu sentia meu ser se dissolvendo em lágrimas e os soluços perfuravam minha alma rasgando-me por inteiro. Eu não me importava com mais nada, tudo o que existia era a dor.
Não sei quanto tempo fiquei mergulhada naquele marasmo, mas em algum momento veio a calma, não havia mais o que chorar. Eu estava seca, como um fruto podre. Levantei-me e me dirigi a pia, onde lavei meu rosto e arrumei meu cabelo. Respirei fundo e sai para o corredor em direção ao necrotério do hospital. Eu sabia que precisava tomar todas as providências, mas eu precisava vê-lo, para que tudo aquilo talvez fizesse algum sentido e eu parasse de esperar a cada minuto que ele aparecesse dizendo que era uma pegadinha de muito mau gosto, que ele na verdade estava ótimo e que o emprego que ele havia escolhido porque desejava proteger as pessoas, não o tinha matado.
Na verdade eu realmente não queria ir vê-lo imóvel e frio, seu corpo gelado e sem vida. Eu gostaria de levar a minha última lembrança dele para sempre. Seu sorriso doce dizendo que iria voltar para mim, o beijo com gosto de café, as mãos quentes em meu rosto. As crianças correndo à sua volta disputando atenção.
Mas agora, meus filhos não terão mais um pai. O crime havia lhes tirado isso. “Ah, nossa vida não vale nada, somos totalmente descartáveis...”.
No necrotério uma senhora de jaleco branco estava sentada em uma escrivaninha digitando em um computador.
- Gostaria de ver meu marido, ele... Ele se chama Fábio Oliveira.
Ela levantou os olhos do monitor e com um olhar compadecido me disse que sentia muito e pediu para que eu a seguisse. O corpo estava coberto com um pano branco. Minhas mãos tremiam e eu pedi para ficar a sós com ele.
Fechei os olhos, respirei fundo e puxei para baixo sua mortalha.
Não, não, não, não...!”
Minhas pernas falharam e fui ao chão, eu não conseguia chorar, as lágrimas tinham secado e um soluço rouco e doloroso vazava de meus lábios incessantemente, quebrando como ondas nas rochas, eles quebravam meu peito em pedaços pequenos e ensanguentados. Mas forcei-me a levantar e encará-lo de frente, como fiz em nosso primeiro encontro, eu devia isso a ele, já que não havia nada que eu pudesse fazer para trazê-lo de volta e nem para retornar todo o amor e felicidade que ele me proporcionou. Isso era tudo o que eu podia fazer.
Sua face estática e pálida, parecia estar dormindo, mas jamais abriria os olhos novamente. Aquela era somente a casca do homem que eu amava. Acariciei sua face lentamente e beijei-lhe os lábios, afagando seus cabelos e lhe dizendo repetidamente que o amava e que cuidaria de nossos filhos, ele poderia descansar em paz afinal. Pedi também que tivesse paciência, pois talvez eu demorasse a me juntar a ele, nossos filhos precisavam de mim.
Apertei-lhe a mão uma última vez e virei às costas para o meu grande amor.




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