Todos
os dias eu aguardo ansiosamente pelo seu retorno sentada no sofá. Os olhos
fixos no televisor, esperando ouvir ao longe o som de passos conhecidos a se
aproximar na calçada. O tempo não existe, há somente a espera que parece não
ter fim e a ansiedade agonizante.
Na
escada ouço um barulho que me desperta do transe.
-
Mamãe?
-
Oi querido – respondo rapidamente me levantando e indo vê-lo.
Sinto-me
endurecida, como uma máquina enferrujada. O coração pesado a bater no peito – O
que foi? Teve um sonho ruim? – Pergunto pegando-o nos braços. Meu pequeno
tesouro.
Com
um aceno de cabeça ele confirma. Seus olhinhos pequenos inchados de sono, os
cabelos dourados bagunçados como os do pai.
-
Ah venha aqui. Mamãe vai espantar o sonho feio com muitos e muitos beijos e
abraços – digo começando a beijar-lhe a face pequena e redonda e a abraçá-lo
repetidas vezes.
-
Vai ficar tudo bem. A mamãe está aqui – repito enquanto o carrego para o
quarto. Na cama ao lado sua irmã dorme despreocupada. Com cuidado coloco-o na
sua e cubro-o cuidadosamente.
-
Quer que a mamãe fique aqui até você dormir? – Pergunto afastando os cabelos de
sua testa.
-
Uhum.
-
Está bem. Então feche os olhinhos e durma bem. Vou ficar aqui.
Ele
fecha os olhos languidamente, mas somente para abrir de novo, segundos depois,
com uma expressão preocupada a tomar-lhe a face inocente.
-
Papai ainda não chegou?
-
Não... Mas não se preocupe, vai ficar tudo bem. Papai é forte, lembra?
Ele
concorda com um sorriso tímido, fecha os olhos e com o rosto tranquilo adormece
quase imediatamente.
Após
algum tempo levanto-me com um suspiro e me dirijo novamente à minha sala de
espera e ao meu tormento. Com muito esforço tento não atribuir o atraso a algum
incidente, tento me convencer de que tudo está bem e que nada aconteceu, que em
instantes ele vai entrar pela porta com o olhar exausto e perdido, soltar um
suspiro cansado, jogar as chaves no balcão, perceber que estou esperando e vir
ao meu encontro a grandes passadas com um brilho esperançoso no olhar, suas
mãos vão segurar meu rosto e ele dirá.
-
Não precisava ter me esperado.
E
eu responderei sorrindo:
-
Eu sempre te esperarei.
Mas
isso não acontece nessa noite e quando os pássaros começam a cantar lá fora eu sei
que nada vai ficar bem e que não poderei mais enfiar as mãos em seus cabelos
dourados e macios e caçoar dos poucos cabelos brancos dizendo que ele está
ficando velho. Nem tão pouco poderei me perder em seus olhos tão cinzentos
quanto uma tempestade.
Sei
que agora falta pouco e alguém virá, com um olhar cansado e triste de quem
preferia estar em qualquer lugar, fazendo qualquer coisa que não fosse aquilo e
eu vou entender, pois vou desejar ouvir qualquer coisa menos o que eles virão
me dizer.
Quando
a manhã já ia avançada, ouço passos na calçada, meu coração se encolhe em
expectativa, a esperança pulsando em minhas veias.
Mas
a campainha soa.
Quero
gritar e espernear. Bater em alguém com toda a minha força.
Porém,
me levanto, arrumo o cabelo e abro a porta.
Dois
oficiais fardados me confirmam o pior, sinto meu coração despencar rumo ao
abismo, sendo comprimido dolorosamente.
Um
nó se forma em minha garganta, mas não derramo nenhuma lágrima.
-
Sra. Raquel?
-
Sim.
-
Podemos entrar para falar com a senhora?
-
Claro, entrem – respondo abrindo espaço para os arautos de minha desgraça
entrarem em minha casa – sentem-se, por favor – digo apontando o sofá.
-
Obrigada – responde a oficial morena de olhos afiados e escrutinadores que
parecem ver minha alma.
Eu
quero perguntar, mas não quero saber, então permaneço em silêncio.
Um
silêncio incomodo até que a oficial o rompe com um abrir de seus lábios
carnudos.
-
Vou direto ao ponto, senhora. Seu marido sofreu um ferimento de bala na noite
passada ao atender uma ocorrência de assalto à mão armada. Ele está nesse
momento em uma sala de cirurgia, porém os médicos acreditam que suas chances
são pequenas. Sentimos muito por tudo ser repentino, mas precisamos levá-la
para o hospital imediatamente.
Fecho
os olhos e respiro fundo, minha alma aos pedaços. Um eco vibrante e sinistro “suas chances são pequenas”. Quero mesmo
me levantar e chutar eles porta afora dizendo para pararem de mentir, porque
aquilo não pode ser verdade.
Mas
é.
E
por isso me agradeço e levanto em transe, pego o telefone e peço para a vizinha
se ela não poderia, por gentileza, olhar as crianças para mim por um tempo.
-
É urgente – concluo com voz robótica.
-
Claro – responde ela com apreensão – estou indo.
Quando
termino de me vestir ela aparece com olhar aflito e piedoso. Ela sabe. Viu o
camburão estacionado em frente a minha casa. Quando paro para falar com ela,
tenta me abraçar mas me desvio não muito delicadamente e lhe lanço um olhar de
desculpas, espero que seja o bastante. Não posso me permitir sentir. Se ela me
abraçasse, sei que me desfaria em poeira e o vento me levaria para longe.
-
Estou pronta – digo enquanto os espero parada na porta.
O
caminho até o hospital é como um grande borrão e não me lembro de nada além do
vazio.
No
hospital tentei controlar o meu impulso de sair correndo e perguntando onde ele estava, onde diabos eles tinham escondido o meu marido. No lugar disso,
caminhei calmamente ao lado dos oficiais que me levaram por corredores
apinhados de gente com olhar vazio e desesperado. Muitos deles parecendo sofrer
com algum tipo de dor física, muitos choravam e se contorciam em macas
improvisadas esperando pelo atendimento que talvez nunca acontecesse.
O
corredor seguinte encontrava-se mais vazio e foi lá que eles pararam.
-
Vou checar qual a situação atual e volto para avisar a senhora.
-
Obrigada – respondo sentando-me em um banco duro.
Pouco
tempo depois o oficial voltou, sua feição inexpressiva me dizia tudo o que eu
precisava saber. Com um aceno, levantei-me. Algo em mim partiu-se e me senti
como um boneco, um fantoche sem vontade própria.
-
Quando poderei ver o corpo?
-
Quando for levado para o necrotério.
-
Tudo bem, obrigada.
Lentamente
caminhei em direção ao banheiro como se estivesse pisando em pregos, tudo o que
eu desejava era me jogar no chão e chorar e foi o que eu fiz quando cheguei lá,
encostei-me a porta e deixei toda a minha dor fluir, eu sentia meu ser se
dissolvendo em lágrimas e os soluços perfuravam minha alma rasgando-me por
inteiro. Eu não me importava com mais nada, tudo o que existia era a dor.
Não
sei quanto tempo fiquei mergulhada naquele marasmo, mas em algum momento veio a
calma, não havia mais o que chorar. Eu estava seca, como um fruto podre.
Levantei-me e me dirigi a pia, onde lavei meu rosto e arrumei meu cabelo. Respirei
fundo e sai para o corredor em direção ao necrotério do hospital. Eu sabia que
precisava tomar todas as providências, mas eu precisava vê-lo, para que tudo
aquilo talvez fizesse algum sentido e eu parasse de esperar a cada minuto que
ele aparecesse dizendo que era uma pegadinha de muito mau gosto, que ele na
verdade estava ótimo e que o emprego que ele havia escolhido porque desejava
proteger as pessoas, não o tinha matado.
Na
verdade eu realmente não queria ir vê-lo imóvel e frio, seu corpo gelado e sem
vida. Eu gostaria de levar a minha última lembrança dele para sempre. Seu
sorriso doce dizendo que iria voltar para mim, o beijo com gosto de café, as
mãos quentes em meu rosto. As crianças correndo à sua volta disputando atenção.
Mas
agora, meus filhos não terão mais um pai. O crime havia lhes tirado isso. “Ah, nossa vida não vale nada, somos
totalmente descartáveis...”.
No
necrotério uma senhora de jaleco branco estava sentada em uma escrivaninha
digitando em um computador.
-
Gostaria de ver meu marido, ele... Ele se chama Fábio Oliveira.
Ela
levantou os olhos do monitor e com um olhar compadecido me disse que sentia
muito e pediu para que eu a seguisse. O corpo estava coberto com um pano
branco. Minhas mãos tremiam e eu pedi para ficar a sós com ele.
Fechei
os olhos, respirei fundo e puxei para baixo sua mortalha.
“Não, não, não, não...!”
Minhas
pernas falharam e fui ao chão, eu não conseguia chorar, as lágrimas tinham
secado e um soluço rouco e doloroso vazava de meus lábios incessantemente,
quebrando como ondas nas rochas, eles quebravam meu peito em pedaços pequenos e
ensanguentados. Mas forcei-me a levantar e encará-lo de frente, como fiz em
nosso primeiro encontro, eu devia isso a ele, já que não havia nada que eu
pudesse fazer para trazê-lo de volta e nem para retornar todo o amor e
felicidade que ele me proporcionou. Isso era tudo o que eu podia fazer.
Sua
face estática e pálida, parecia estar dormindo, mas jamais abriria os olhos
novamente. Aquela era somente a casca do homem que eu amava. Acariciei sua face
lentamente e beijei-lhe os lábios, afagando seus cabelos e lhe dizendo
repetidamente que o amava e que cuidaria de nossos filhos, ele poderia
descansar em paz afinal. Pedi também que tivesse paciência, pois talvez eu
demorasse a me juntar a ele, nossos filhos precisavam de mim.
Apertei-lhe
a mão uma última vez e virei às costas para o meu grande amor.
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