Ela sentiu o vento
roçando seus cabelos que se mesclavam com a escuridão mórbida, como se fizessem
parte de um mesmo novelo de lã negra e grossa. O céu encoberto pela camada de
poluição avermelhada que já era típica da capital paulista afastava as estrelas
para um universo paralelo diferente, tão distante quanto a própria essência
rústica e fluorescente de Kamillie.
Seus pés balançavam
vagarosamente sob o infinito inóspito e luminoso daquela megalópole que
ostentava um grande outdoor de esperança para aqueles que buscam um futuro
novo, uma vida melhor, mas que era uma verdadeira teia de aranha para os
sonhos, que acabavam enredados em mentiras e em paredes invisíveis de
praticidade.
Kamillie segurava-se
firmemente ao beiral da sacada do décimo andar de um prédio comercial qualquer,
escolhido a esmo porque parecia ter uma boa vista da borbulhante massa de gente
e concreto que trasbordava pelas ruas a todo tempo, como num verdadeiro
formigueiro concretado.
Ela não tinha medo de
cair, segurava-se as bordas de tudo como sempre fizera durante os singelos 25
anos de sua existência inútil, por costume, já que nunca fora capaz de
mergulhar profundamente em nada, sempre permanecera no raso, onde seus pés
podiam alcançar o chão ao menor sinal de perigo.
Mas no fundo ela
ansiava a imensidão, o voo inconsequente e único, digno da libertação. Um
ultimo grito de protesto contra as amarras e mordaças que a amordaçaram a vida
toda impossibilitando-a de dizer o que pensava, impedindo-a de sentir.
Sentia-se como uma escrava da vida, portadora de correntes invisíveis.
Kamillie sempre
desejara o infinito, ansiando voar pela borda do mundo, caindo na neblina da
imensidão transcendental. Mas por muito tempo ela receara a escuridão,
refugiando-se nas luzes unilaterais que a consumiam sem tocá-la. Porém, ela
nunca fora capaz de exalar luz, as luzes sempre tocavam sua pele sem
adentrá-la, pois a escuridão dentro dela era maior que qualquer outra.
Ela sempre sentira que
haviam duas almas gritando de dentro de seu corpo, uma que ansiava a paz
enquanto a outra desejava com uma intensidade preocupante a guerra, a dor, e a
violência. Sempre fora difícil para ela entender e manter sobre controle aquela
parte terrível dela da qual tinha vergonha e apelidara de Ava.
Naquela noite, Ava
estava quieta, Kamillie não sabia dizer o que ela pensava ou sentia, talvez
raiva, quiçá prazer em ver que conseguira alcançar a sua própria extinção.
Perdida em pensamentos
ela não notou os olhos felinos de mar que a fitavam, com o deleite profano do
predador que observa sua vítima sem que a mesma tenha consciência do fato.
Kamillie respirou
profundamente, uma, duas vezes, buscando a coragem para lançar-se rumo ao nada,
mas o conceito de nada a intrigava, e fazia com que ela se sentisse ainda pior.
- Algum problema? –
perguntou uma voz diretamente atrás de Kamillie.
Ela voltou-se assustada
para a origem do som. Observou aquela mulher, que aparentava ter
aproximadamente a mesma idade que ela, com seus longos cabelos platinados, e
seus misteriosos olhos azuis. Era a criatura mais bela e estranha que ela já
havia visto, porém, o encanto que ela exercia sobre o corpo e mente de Kamillie
era inegável, ela desejava tocá-la, e idolatrá-la, ao mesmo tempo em que uma
parte de sua mente, sempre dividida, ansiava lançar-se pelo vazio diante de si.
- Talvez eu possa lhe
ajudar – afirmou a estranha, seus olhos brilhavam.
- Ou não – respondeu
Kamillie – não preciso de ajuda, sei perfeitamente o que estou fazendo, não sou
louca.
Mas no fundo, ela
acreditava ser louca, eram tantas vozes girando em sua cabeça quando as duas
“ela” começavam a discutir, que Kamillie nunca sabia quem de verdade era ela.
Sua vida fora uma mentira, um fracasso, um purgatório, ao menos era isso que
ela pensava.
- Eu te conheço melhor
do que pensa, Kamillie. Eu a tenho observado, durante algum tempo, eu a desejo.
Kamillie não sabia o
que responder, pois apesar de suas bochechas corarem, e ela não ter nada
contra, nunca se sentira atraída por mulheres.
- Que espécie de pessoa
persegue a outra dessa forma?
- Bem, eu não sou bem
uma pessoa. Demorei muito tempo para sentir-me assim por alguém novamente, com
ganas de ter a pessoa, ou criatura, ao meu lado por um longo, longo tempo. Mas
há algo... Algo em você que me agrada, seu sangue me clama.
- Que? Meu sangue? Mas
que merda é essa?
- Em breve você
entenderá. Além disso, posso lhe ajudar a resolver o pequeno probleminha de
confronto de identidade que você enfrenta.
- Como você sabe disso?
Ninguém sabe.
- Digamos que eu sei de
muita coisa. Venha comigo Kamillie, eu posso lhe mostrar coisas maravilhosas,
um mundo que você jamais sonhou. Doces... Doces perversões, que você jamais
ousou desejar.
- Isso parece um pacto
com o diabo, você sabe.
A dama de prata sorriu
largamente, seus dentes perfeitamente alinhados reluziam ao brilho da lua
cheia.
- De certa forma talvez
seja. Mas eu não desejo sua alma, bom, ao menos não na minha concepção das
coisas. Alguns diriam que seres como eu não possuem alma, não sei se isso é
apenas um mito ou não, nunca morri para saber.
Kamillie não sabia o
que fazer, verdade seja dita, ela não queria realmente se matar, ela só queria
acabar com o sofrimento que sentia e se havia outra alternativa, porque não
arriscar? O que ela tinha a perder? Um apartamento vazio e 2 gatos gordos? Uma
família que a odiava? Amigos inexistentes? Não... Ela não tinha nada que a
prendesse, e isso era deprimente.
Virando lentamente o
corpo e voltando as costas para o imenso vazio que antes seria sua tumba,
Kamillie estendeu as mãos para aquela desconhecida, que seria sua salvação e danação
eterna.
Suas mãos tocaram-se e
uniram-se enquanto Anastasia a puxava para um abraço que mudaria tudo.
***
Quando descerrei as
cortinas de minha alma, afoguei-me em seus felinos olhos azuis, que exerciam
sobre mim um poder magnético que eu jamais seria capaz de explicar. De seus
lábios de tulipa, escorriam gotas vermelhas de luxuria que atraiam-me com uma
força irresistível e seu cheiro que inundava o meu universo e preenchia-me de
desejo, era como o de ínfimas centelhas de pecado.
Seus caninos alvos eram
como adagas mortais a perfurar minha carne, seus cabelos platinados
enroscavam-se nos meus sob seu colo farto. Ela era como a aurora pálida que eu
jamais voltaria a ver.
Anastasia inclinou-se
sobre mim, meu sangue dançando em seus maléficos lábios que me sorriam
escarlates. Eu desejava aqueles lábios conspurcados mais do que tudo, e quando
sua boca fechou-se sob a minha e o sangue quente explodiu no céu da minha boca
com um sabor irresistível eu senti que provara a coisa mais saborosa que
poderia existir.
Eu sentia minha alma,
minha essência em enlace com a dela esparramar-se pelo céu de minha boca,
deslizando por minha língua como o mais delicioso vinho suave do universo.
Cedo demais ela
afastou-se de mim, fitando-me com aqueles olhos profundos que haviam visto
milhares de coisas, centenas de anos. Ela ajoelhou-se a minha frente na cama,
aquela criatura poderosa ajoelhada diante de mim, com aqueles olhar poderoso,
faziam com que eu queimasse de excitação enquanto ela lentamente passava suas
unhas pintadas de preto, afiadas como as garras de um leopardo, sob seu seio
direito rasgando-o.
O vermelho tingiu sua
pele, hipnotizando-me, aquele cheiro de sangue fresco, do sangue dela, despertou completamente a
escuridão em mim, fazendo meu instinto de fera rugir. O líquido deslizava por
sua pele branca como a neve, eu acompanhava cada movimento daquela preciosa
ambrosia.
Em velocidade inatural,
eu me lancei sobre ela com mãos e língua, e um desejo tão primitivo quanto a
aurora dos tempos. Em êxtase, suguei cada gota que escorria por seu seio,
deleitando-me enquanto ela suspirava.
Um mundo novo abria-se
diante de mim, assim como minhas pernas diante dela. Seus lábios de tulipa
orvalhados por mim, representavam um universo paralelo que nunca imaginei
existir, e que ostentava um mar sem fim de possibilidades por trás de suas
cortinas negras como a morte pela qual havia passado para estar ao lado dela.
Ela era o perverso
pecado do qual eu sugava vagarosamente o gozo da luxuria.
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