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sexta-feira, 26 de abril de 2013

Gotas de Sangue



Ela sentiu o vento roçando seus cabelos que se mesclavam com a escuridão mórbida, como se fizessem parte de um mesmo novelo de lã negra e grossa. O céu encoberto pela camada de poluição avermelhada que já era típica da capital paulista afastava as estrelas para um universo paralelo diferente, tão distante quanto a própria essência rústica e fluorescente de Kamillie.
Seus pés balançavam vagarosamente sob o infinito inóspito e luminoso daquela megalópole que ostentava um grande outdoor de esperança para aqueles que buscam um futuro novo, uma vida melhor, mas que era uma verdadeira teia de aranha para os sonhos, que acabavam enredados em mentiras e em paredes invisíveis de praticidade.
Kamillie segurava-se firmemente ao beiral da sacada do décimo andar de um prédio comercial qualquer, escolhido a esmo porque parecia ter uma boa vista da borbulhante massa de gente e concreto que trasbordava pelas ruas a todo tempo, como num verdadeiro formigueiro concretado.
Ela não tinha medo de cair, segurava-se as bordas de tudo como sempre fizera durante os singelos 25 anos de sua existência inútil, por costume, já que nunca fora capaz de mergulhar profundamente em nada, sempre permanecera no raso, onde seus pés podiam alcançar o chão ao menor sinal de perigo.
Mas no fundo ela ansiava a imensidão, o voo inconsequente e único, digno da libertação. Um ultimo grito de protesto contra as amarras e mordaças que a amordaçaram a vida toda impossibilitando-a de dizer o que pensava, impedindo-a de sentir. Sentia-se como uma escrava da vida, portadora de correntes invisíveis.
Kamillie sempre desejara o infinito, ansiando voar pela borda do mundo, caindo na neblina da imensidão transcendental. Mas por muito tempo ela receara a escuridão, refugiando-se nas luzes unilaterais que a consumiam sem tocá-la. Porém, ela nunca fora capaz de exalar luz, as luzes sempre tocavam sua pele sem adentrá-la, pois a escuridão dentro dela era maior que qualquer outra.


Ela sempre sentira que haviam duas almas gritando de dentro de seu corpo, uma que ansiava a paz enquanto a outra desejava com uma intensidade preocupante a guerra, a dor, e a violência. Sempre fora difícil para ela entender e manter sobre controle aquela parte terrível dela da qual tinha vergonha e apelidara de Ava.
Naquela noite, Ava estava quieta, Kamillie não sabia dizer o que ela pensava ou sentia, talvez raiva, quiçá prazer em ver que conseguira alcançar a sua própria extinção.
Perdida em pensamentos ela não notou os olhos felinos de mar que a fitavam, com o deleite profano do predador que observa sua vítima sem que a mesma tenha consciência do fato.
Kamillie respirou profundamente, uma, duas vezes, buscando a coragem para lançar-se rumo ao nada, mas o conceito de nada a intrigava, e fazia com que ela se sentisse ainda pior.
- Algum problema? – perguntou uma voz diretamente atrás de Kamillie.
Ela voltou-se assustada para a origem do som. Observou aquela mulher, que aparentava ter aproximadamente a mesma idade que ela, com seus longos cabelos platinados, e seus misteriosos olhos azuis. Era a criatura mais bela e estranha que ela já havia visto, porém, o encanto que ela exercia sobre o corpo e mente de Kamillie era inegável, ela desejava tocá-la, e idolatrá-la, ao mesmo tempo em que uma parte de sua mente, sempre dividida, ansiava lançar-se pelo vazio diante de si.
- Talvez eu possa lhe ajudar – afirmou a estranha, seus olhos brilhavam.
- Ou não – respondeu Kamillie – não preciso de ajuda, sei perfeitamente o que estou fazendo, não sou louca.
Mas no fundo, ela acreditava ser louca, eram tantas vozes girando em sua cabeça quando as duas “ela” começavam a discutir, que Kamillie nunca sabia quem de verdade era ela. Sua vida fora uma mentira, um fracasso, um purgatório, ao menos era isso que ela pensava.
- Eu te conheço melhor do que pensa, Kamillie. Eu a tenho observado, durante algum tempo, eu a desejo.
Kamillie não sabia o que responder, pois apesar de suas bochechas corarem, e ela não ter nada contra, nunca se sentira atraída por mulheres.
- Que espécie de pessoa persegue a outra dessa forma?
- Bem, eu não sou bem uma pessoa. Demorei muito tempo para sentir-me assim por alguém novamente, com ganas de ter a pessoa, ou criatura, ao meu lado por um longo, longo tempo. Mas há algo... Algo em você que me agrada, seu sangue me clama.
- Que? Meu sangue? Mas que merda é essa?
- Em breve você entenderá. Além disso, posso lhe ajudar a resolver o pequeno probleminha de confronto de identidade que você enfrenta.
- Como você sabe disso? Ninguém sabe.
- Digamos que eu sei de muita coisa. Venha comigo Kamillie, eu posso lhe mostrar coisas maravilhosas, um mundo que você jamais sonhou. Doces... Doces perversões, que você jamais ousou desejar.
- Isso parece um pacto com o diabo, você sabe.
A dama de prata sorriu largamente, seus dentes perfeitamente alinhados reluziam ao brilho da lua cheia.
- De certa forma talvez seja. Mas eu não desejo sua alma, bom, ao menos não na minha concepção das coisas. Alguns diriam que seres como eu não possuem alma, não sei se isso é apenas um mito ou não, nunca morri para saber.
Kamillie não sabia o que fazer, verdade seja dita, ela não queria realmente se matar, ela só queria acabar com o sofrimento que sentia e se havia outra alternativa, porque não arriscar? O que ela tinha a perder? Um apartamento vazio e 2 gatos gordos? Uma família que a odiava? Amigos inexistentes? Não... Ela não tinha nada que a prendesse, e isso era deprimente.
Virando lentamente o corpo e voltando as costas para o imenso vazio que antes seria sua tumba, Kamillie estendeu as mãos para aquela desconhecida, que seria sua salvação e danação eterna.
Suas mãos tocaram-se e uniram-se enquanto Anastasia a puxava para um abraço que mudaria tudo.

***
Quando descerrei as cortinas de minha alma, afoguei-me em seus felinos olhos azuis, que exerciam sobre mim um poder magnético que eu jamais seria capaz de explicar. De seus lábios de tulipa, escorriam gotas vermelhas de luxuria que atraiam-me com uma força irresistível e seu cheiro que inundava o meu universo e preenchia-me de desejo, era como o de ínfimas centelhas de pecado.
Seus caninos alvos eram como adagas mortais a perfurar minha carne, seus cabelos platinados enroscavam-se nos meus sob seu colo farto. Ela era como a aurora pálida que eu jamais voltaria a ver.
Anastasia inclinou-se sobre mim, meu sangue dançando em seus maléficos lábios que me sorriam escarlates. Eu desejava aqueles lábios conspurcados mais do que tudo, e quando sua boca fechou-se sob a minha e o sangue quente explodiu no céu da minha boca com um sabor irresistível eu senti que provara a coisa mais saborosa que poderia existir.
Eu sentia minha alma, minha essência em enlace com a dela esparramar-se pelo céu de minha boca, deslizando por minha língua como o mais delicioso vinho suave do universo.
Cedo demais ela afastou-se de mim, fitando-me com aqueles olhos profundos que haviam visto milhares de coisas, centenas de anos. Ela ajoelhou-se a minha frente na cama, aquela criatura poderosa ajoelhada diante de mim, com aqueles olhar poderoso, faziam com que eu queimasse de excitação enquanto ela lentamente passava suas unhas pintadas de preto, afiadas como as garras de um leopardo, sob seu seio direito rasgando-o.
O vermelho tingiu sua pele, hipnotizando-me, aquele cheiro de sangue fresco, do sangue dela, despertou completamente a escuridão em mim, fazendo meu instinto de fera rugir. O líquido deslizava por sua pele branca como a neve, eu acompanhava cada movimento daquela preciosa ambrosia.
Em velocidade inatural, eu me lancei sobre ela com mãos e língua, e um desejo tão primitivo quanto a aurora dos tempos. Em êxtase, suguei cada gota que escorria por seu seio, deleitando-me enquanto ela suspirava.
Um mundo novo abria-se diante de mim, assim como minhas pernas diante dela. Seus lábios de tulipa orvalhados por mim, representavam um universo paralelo que nunca imaginei existir, e que ostentava um mar sem fim de possibilidades por trás de suas cortinas negras como a morte pela qual havia passado para estar ao lado dela.
Ela era o perverso pecado do qual eu sugava vagarosamente o gozo da luxuria.

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