Era uma manhã de outono na grande São Paulo e o barulho da cidade despertando vibrava pelo ar. Ele estava sentado no degrau da escada, os olhos inchados de tanto chorar. O nariz repleto de ranho, o rosto desfigurado de dor e descrença. Como isso poderia ter acontecido? Esse entendimento parecia fugir-lhe pelas pontas dos dedos, como uma borboleta faceira e esguia.
Com uma fungada deprimida ele decidiu que era hora de encarar o momento, deixar a dor de lado e ser o homem que ela havia lhe ensinado a ser, com tanto amor, carinho e dedicação durante todos aqueles anos. Arrumou a gravata cinzenta lentamente, as mãos tremeluzentes dificultavam o processo já naturalmente complicado. Um último olhar para o alvorecer, ao longe nuvens escuras despontavam no horizonte. Talvez amanhã chovesse.
Suspirou uma última vez e entrou na casa pintada de marrom, a tinta descascando em alguns pontos, se arrependeu de não ter pintado no verão passado quando a mãe insistira. Pelo canto dos olhos viu na porta os riscos que indicavam o crescimento dele e da irmã. Lembrou-se com tristeza da alegria que sentia a cada centímetro que passava a irmã e do orgulho bobo e infantil que sentiu quando passou o pai na altura, o brilho de divertimento nos olhos do mesmo vendo o filho feliz com algo tão simples.
Caminhou mais um passo casa a dentro, o cheiro do perfume da mãe inundou-lhe os sentidos como um soco na boca do estomago, as flores da mesa de centro estavam morrendo, as pétalas caiam preguiçosamente pelo móvel e espalhavam-se pelo chão de madeira polida com zelo, que agora começava a perder o brilho.
Da cozinha vinha o cheiro de bolo de cenoura e seu coração deu uma guinada de esperança tola, a mão suou frio, os pés aceleraram o passo. De costas a figura remexia nos armários com seu avental de tetris, presente dos filhos em um natal muitos anos antes, as mãos moviam-se ágeis pelas portas. Quase correu a abraçá-la, mas então a figura virou-se e o encanto quebrou-se relevando a irmã. O rosto jovem e com poucas rugas lançou-lhe um olhar triste e piedoso ao ver o espanto no rosto do homem que estacara na porta.
- Desculpe, só tinha esse avental aqui...Eu… Eu pensei em fazer um último bolo… Sabe, para relembrar os bons tempos… Acho que… Acho que mamãe gostaria disso.
A garganta fechara-se, os olhos encheram-se de lágrimas, as mãos ficaram pregadas ao lado do corpo. O ar parecia faltar e o mundo parecia abrir-se sob seus pés imensos, tamanho 43.
- Oh Gabriel, sinto muito, muito mesmo…
A jovem mulher correu para abraçar o irmão mais novo, seu bebezinho, seu tesouro mais querido. Os dois permaneceram abraçados, as lágrimas rolando enquanto o cheiro do bolo de cenoura os envolvia.
- Anna, o que faremos sem ela? Eu… eu não consigo imaginar como será… - indagou o rapaz, o nó na garganta dificultando a fala.
- Não sei.
Com um movimento suave ela afastou-se e segurou o mais novo pelos ombros largos, quando é que ele ficara tão grande e forte? Perguntou-se ela enquanto fitava aquele rosto jovem repleto de dor. Ela respirou fundo e disse o que precisava ser dito, sabia que precisaria ser a forte ali, pelo bem da família, sem a mãe por perto a função de manter a família unida seria sua.
- Olha Gab, sei que agora está doendo muito, mas ela não gostaria que ficássemos lamentando, tenho certeza que ela ficaria triste e choraria se nos visse assim, como ela sempre fazia quando vinha consolar a gente, você lembra? - perguntou ela sorrindo, a voz embargada, as lágrimas escorrendo - Ela vinha tentar consolar a gente mais acabava chorando junto...
Os dois riram, a mãe sempre fora uma manteiga derretida, chorava por praticamente qualquer coisa no mundo. Ninguém podia chorar perto de Dona Carine que ela chorava junto, era mesmo uma molenga aquela velha, pensou a jovem com nostalgia.
Com um último afago no ombro do jovem, ela afastou-se e foi tirar o bolo do forno, o cheiro tão bom lembrava a mãe, tudo ali lembrava ela, cada pedaço daquela casa era recheado de recordações maravilhosas, e agora dolorosas.
- Acho que você deveria acordar o pai para comermos e irmos, está quase na hora.
O jovem acenou com a cabeça e dirigiu-se as escadas, onde encontrou o pai parado olhando para o nada. Preocupou-se, não sabia como lidar com o homem mais velho, nunca haviam sido muito ligados, sempre fora a mãe que lidara com os filhos. O pai apesar de ser bom homem, sempre fora muito fechado e quieto.
Com calma ele aproximou-se do pai e colocou-lhe a mão no ombro, seguindo o olhar do homem. A poucos metros dali uma borboleta colorida esvoaçava dentro da cristaleira antiga, sobre as fotos de família de forma hipnótica.
- Você sabia que sua mãe adorava borboletas? Ela sempre fora fascinada por esses pequenos animais - disse o homem com a voz de timbre forte oscilando de emoção. Caminhou até a cristaleira e abriu a porta com calma, um sorriso sereno estampado no rosto - mas veja só, como você foi parar aí dentro, pequenina? - Levantou o dedo para o pequeno inseto que pousou delicadamente. O homem então endireitou-se e levou o animal para o jardim que a mulher cultivara durantes anos e que agora era sua responsabilidade.
O filho observava com fascínio enquanto a borboleta sobrevoava a cabeça do pai e depois subia rumo aos céus. O homem virou-se e dirigiu-se em direção a cozinha sem uma única palavra sobre o assunto, e ele jamais falaria sobre aquele momento, mas o sorriso sereno e calmo que estampava em sua face cansada e marcada pelo tempo, anunciavam tranquilidade e paz de espírito, o que deixou o filho mais calmo.
Comeram o bolo enquanto relembravam momentos bons do tempo em que eram crianças, episódios em que a vida lhes tinha parecido infinita e as possibilidades inesgotáveis, e com calma e tranquilidade dirigiram-se a igreja onde diriam um último adeus a mulher que mais haviam amado no mundo e que a sete dias partira, para nunca mais voltar. Mas eles sabiam agora que não era um adeus, era um até breve.